A pontualidade chinesa pregou-me uma partida: o ferry para Shenzhen está atrasado. Os ânimos exaltam-se entre os chineses, a situação não se resolve e o relógio não pára. Sou surpreendido por um “tic-tac” interior, em tudo semelhante, até em timbre, ao que saía das entranhas do crocodilo. Penso em J. M. Barrie, imaginando o Peter Pan voando em um qualquer parque londrino, transformado em “terra do nunca”.
A minha aproximação a Xangai dá-se durante a noite… Os arranha-céus irrompem em direcção ao infinito, até onde a vista já não alcança, os bailados de luzes que brilham na penumbra cor-de-leite lembram os passos sincronizados de uma peça da Broadway. É madrugada e a agitação ainda toma conta da cidade. A capital financeira da China, emprenhada de 12 milhões de chineses e 5 milhões de estrangeiros, nunca dorme e mal respira!
Como grande parte da história chinesa, também Xangai se encontra umbilicalmente unida ao ópio, não porque os seus habitantes sintam um desejo descontrolado por se entregarem aos prazeres dessa massa gelatinosa que a papoila sabiamente produz, mas porque, como consequência da derrota da China frente ao Reino Unido, na Guerra do Ópio, aquela foi obrigada a abrir o porto de Xangai ao comércio externo. Permitiu-se que o comércio florescesse, assim como a eterna e muito amada “puta do oriente”.
Deambulo pela cidade quase sem rumo, identifico ao longe alguns dos edifícios mais famosos… quase todos entregues ao capitalismo canibal que mina por dentro a china moderna. Passeios entre gigantes de betão e a par com riquexós, barraquinhas de tudo-e-mais-alguma-coisa, sinto o palpitar do coração chinês e dou comigo debaixo de uma chuva miudinha e de um frio que me tolhe os movimentos e me impede as palavras.
Subo a mais de 10 m/s, no elevador mais rápido do mundo… tenho medo de parar só no céu e não serem muito agradáveis as surpresas que o todo-poderoso preparou para mim. Também na Jinmao tower o engenho chinês para o negócio salta à vista. Um bilhete de entrada, com o respectivo desconto que o International Student Identity Card proporciona, dá direito a uma pérola… verdadeira! Claro que, enquanto a escolhia, duas simpáticas meninas tentam a todo o custo impingir-me um colar, que de tão clássico que era, já roçava as teias e o mofo. Passo alguns minutos a tirar fotos, aprecio o vai-e-vem de barcos que cruzam o rio, estou quase no céu, mas o pensamento teima em não deixar terra firme! E por aí andará nos próximos dias!
Troco uns quantos renmimbis por um prato de fried noodles e uma cerveja bem gelada… retempero forças de uns dias extenuantes. Ainda sinto os meus passos percorrendo jardins, mercados e praças… ainda sinto o cheiro da agitação própria de cidades que vivem como Shanghai, como se não houvesse amanha para uns e um futuro promissor para outros. Ainda sinto o fervilhar das pessoas, acotovelando-se, bradando… ainda sinto o meu olhar incrédulo tentando decifrar a meia dúzia de caracteres no meu bilhete de comboio…
Ainda sinto um arrepio quando miro de soslaio o rosto da China! passará?