A esta hora do dia, os montes que rodeiam El Chaltén são invisíveis, escondem-se na penumbra da madrugada. Quando acordámos o sol ainda estava longe de nascer, apesar de para leste, um rubor anunciar o lindo dia sol que se avizinhava…
As gotas condensadas na janela do quarto faziam adivinhar o frio que fazia, lá fora.
Descemos ao primeiro piso, à zona do bar e, enquanto tomámos um café bem forte, vimos pela última vez o percurso no mapa que tínhamos arranjado no dia anterior.
Começámos a percorrer os primeiros metros do percurso que nos havia de levar à “Laguna Capri” e, bem mais acima, à “Laguna de Los Três”, nos Andes.
Seriam cerca de 24 kms (ida e volta), em pleno contacto com a natureza.
O solo, as plantas, as nossas mãos e orelhas, e até as pedras, estavam completamente geladas. Pelo menos não chovia, como aconteceu nos últimos dias. O clima é mesmo imprevisível por estas paragens.
Lá subimos lentamente, fazendo com que o torpor dos músculos desaparecesse. De repente, aparece o Fitz Roy, em tons avermelhados. Refletia o Sol!
Neste frio, nestes lugares inóspitos, o simples vislumbre do sol refletido no monte, parece que nos aquece a alma.
A Laguna Capri aparece-nos como se diante de nós se escancarassem as portas do paraíso. As águas azuis, serenas, parece que se fundem numa harmonia mágica com o próprio monte.
Foram cerca de duas horas de caminhada e uns 7 km. Estávamos fresquinhos, literalmente! E imóveis permanecemos durante alguns minutos, absortos pelas vistas miríficas.
Tirámos algumas fotos, comemos uma barra de cereais, voltámos a olhar para o mapa e fizémo-nos novamente ao caminho.
A pouco e pouco o sol ia ficando mais a pique, fazendo com que o gelo fosse, lentamente, passando ao estado líquido.
São curvas e contracurvas nesta paisagem de velhas lengas. Riachos que descem dos glaciares da montanha e alimentos lagos, pequenos é verdade, mas fascinantes.
Cada vez o Fitz Roy é mais imponente. Agora as escarpas vêem-se a olho nu. Estão ali tão perto.
O “tic-tac” cardíaco aumentava à medida que o sol subia e nos aproximávamos dele. Sabíamos que os últimos dois/três km iam ser os mais difíceis. Um viajante francês que conhecemos na Laguna Capri disse-nos que os últimos dois km demorariam cerca de hora e meia. Como? É impossível. É já ali… ou era!!!
Passámos o último riacho antes da derradeira subida.
Os pântanos no final do Verão, e as cores quentes do outono, antes de começarmos a subida!
As águas glaciares que descem dos Andes…
A subida é lenta, com o sol cada vez mais a pique. Reforçamos a dose de líquidos e de protetor solar. Avançamos a passo, mesmo a passo.
Sobe-se com cuidado, para não resvalarmos nas pedras soltas do trilho. Daqui de cima, o vale ganhe um tonalidade mágica. Ao fundo Lagunas Madre e Hija refletem o azul do magnífico céu que se abre sobre nós.
Perde-se tempo, ou melhor, ganha-se, a pensar em nada… aqui tudo é lindo, tudo é razão para parar.
Mas há coisas que um viajante só vê uma vez na vida. Ou melhor, só as vê de uma forma.
Há momentos que por tão intensos, são inexplicáveis e jamais ocorrerão. São as circunstância irrepetíveis, ou as pessoas que conhecemos pelo caminho que tornam momentos como estes valer a pena sair de casa. Largar o emprego, o conforto do lar. São momentos como estes que te tiram do sério, que te fazem viajar até ao outro lado do mundo. São momentos como este que te fazem feliz, às vezes com pouco, é verdade, mas por serem só teus, valem para a eternidade. São momentos como estes que nos fazem ser quem somos, uns aspirantes a conhecedores do mundo. E a conhecê-lo sofregamente.
Chegámos ao topo, ali está o Fitz Roy…. ali está a Laguna de Los Três.
Estamos do coração dos Andes.
Sentamos-nos lentamente na rocha gelada. Há silêncios que valem por cada palavra. Não havia nada a dizer quando tudo está à nossa frente e quando podemos chegar lá juntos.
Tirámos as sandes da mochila e devagar fomos degustando… desta vez a paisagem. Não haverá no mundo restaurante panorâmico com tal imensidão, o que lhe falta em estrelas Michelin sobra em cada vislumbre irrelevante para o momento, será o menu. Levamos no palato as cores da natureza.
Chegou a hora do adeus…
Já com o sol, agora sim, bem lá no alto! Passámos por dezenas de trekkers. Alguns mais bem preparados do que outros. E alguns, bem mais preparados do que nós!
Ainda bem que partimos cedo de El Chaltén, agora o sol queima a sério e o esforço seria enorme para chegar lá cima.
Descemos até ao Rio de Las Vueltas. Em breve estaríamos de volta a El Chaltén.
Desceríamos à terra, definitivamente o paraíso tinha ficado para trás. Mas há coisas, que por tão belas que são, ficam marcadas bem cá dentro.
Olá Sérgio e Sandra! O vosso blog, que só descobri agora, é maravilhoso!! Que bom ler-vos. Muita da vontade de viajar começa a despontar quando se lê as viagens dos outros e as vossas crónicas começam a ser uma raridade no mundo blogosférico. Só se lêem dicas de como fazer isto e aquilo e começam a esquecer-se do que penso ser o objectivo de um blog: partilhar também o que se viu e o que se sentiu. Parabéns! 🙂